quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

Cruz e Souza - O principal poeta simbolista brasileiro

“Missal" e "Broquéis" são consideradas as obras que inauguram no Brasil o Simbolismo, movimento literário do século 19 que defende a presença da emoção e da subjetividade humana na arte. Elas são de autoria de Cruz e Sousa, um dos ícones da escola simbolista no país.
"Missal" destaca-se, para começar, pela forma: são poemas em prosa, um estilo bastante singular para a literatura nacional de até então.
Diz-se que esse estilo foi inspirado no francês Charles Baudelaire.
Como é comum na literatura, a vida e a obra confundem-se na história de um escritor. Foi um homem que experimentou toda a força de sua existência - angustiada e obscura - projetando-a numa escrita reveladora dos dramas sociais da época.
Filho de escravos alforriados, teve vida sacrificada e com dissabores próprios àqueles de sua origem; por um lado, teve criação privilegiada junto aos seus protetores (ex-senhores de sua família), por outro, sua vida adulta é marcada pelo enfrentamento da sociedade circundante. Por isso dizemos que Cruz e Sousa foi um poeta social.
Esse traço está profundamente arraigado a sua obra e muitos são os estudos realizados que atestam o comprometimento do autor com a cultura antiescravagista.
Na obra sousacruziana a exclusão do negro da trama social brasileira está temperada pelo pessimismo, pela sensação de desamparo e fracasso diante da vida e revolta pelo desprezo do qual é alvo.
A trajetória de Cruz e Sousa mostra também conflitos dos seus próprios valores. Sua busca pela "arte perfeita" o conduz tanto ao extravasamento dos dilemas sofridos pelos negros quanto ao embate íntimo, expresso no desejo de pertencer à mesma sociedade que o exclui. Neste sentido, o homem vê-se sem seu lugar no mundo enquanto o poeta o encontra na expressão perfeita da sua arte, sendo que ambos coexistem à sombra dos paradoxos, constituindo um dos elementos da estética da linguagem sousacruziana.
No seu poema em prosa Condenado à Morte ("Evocações", 1898), podemos encontrar evidências destes choques de identidade.
Estética e vida real o assombram e, para atingir a arte idealizada, a dor é o caminho a ser trilhado. Enquanto o contato social caracteriza o cotidiano preenchendo-o com as agitações de um mundo doente, o isolamento aparece como uma sorte de bênção que permite ao poeta o exercício pleno da contemplação e da descoberta da verdade.

"Isolado do Mundo, no exílio da Concentração, solitário, na tristeza majestosa de um belo deus esquecido, as outras forças múltiplas que agem na Terra, na luta desenfreada de cada dia, que equilibram as sociedades, que regem a massa vã dos princípios, que dão ritmo a onda eterna do movimento e entram na vasta elaboração da cultura das raças, sentiram-se hostilizados diante da sua intuitiva percuciência de vidente, de sua ironia gelada de asceta, do seu desdém soberano de apóstolo, da sua Fé indestrutível, serena de missionário, de extraordinário levita sombrio de um culto estranho, que leva aos lábios, em extremo, o Cálix místico da comunhão suprema da Espiritualidade e da Forma."

Contradições também são vistas no poema Da Senzala ("O Livro Derradeiro", publicação póstuma). Abaixo, é possível notar que, para aqueles cuja existência estivesse soterrada pela rudeza e dor, não haveria uma saída possível sem uma passagem pela violência.
O lugar onde se encontra (a senzala) e a brutalidade expressa pelo sofrimento diário e incessante do trabalho forçado são capazes de tirar a razão do homem. Sem razão, sem um sentido pelo qual viver, sem um espaço reconhecido como lar, o que resta a este homem então?
O autor aponta que, destituindo-se o homem de si mesmo, alimenta-se o criminoso. Observemos o poema:

"De dentro da senzala escura e lamacenta
Aonde o infeliz
De lágrimas em fel, de ódio se alimenta
Tornando meretriz

A alma que ele tinha, ovante, imaculada
Alegre e sem rancor,
Porém que foi aos poucos sendo transformada
Aos vivos do estertor...

De dentro da senzala
Aonde o crime é rei, e a dor - crânios abala
Em ímpeto ferino;

Não pode sair, não,
Um homem de trabalho, um senso, uma razão...
e sim um assassino!"

Cruz e Sousa travou uma luta não só para expressar-se sobre a sociedade de seu tempo, mas também para compreender-se enquanto homem e artista. Sua escrita foi, por um lado, tomada como arma para combater aqueles que o renegavam e, por outro, um objeto sagrado usado para reverenciar seu anseio de fazer-se notar por sua força estética e pela sua plenitude humana.

*Lílian Campos é formada em letras e professora de língua francesa na PUC-PR e na UFPR, com atuação também no ensino de língua portuguesa.

Nenhum comentário:

Postar um comentário