domingo, 6 de setembro de 2009

Gêneros Literários III

Gênero narrativo
A palavra ficção vem do latim fictionem (fingere, fictum), ato de modelar, criação, formação; ato ou efeito de fingir, inventar, simular; suposição; coisa imaginária, criação da imaginação. Literatura de ficção é aquela que contém uma história inventada ou fingida, fictícia, imaginada, resultado de uma invenção imaginativa, com ou sem intenção de enganar.
A ficção é um dos gêneros literários ou de imaginação criadora (ao lado dos gêneros dramático, lírico, ensaístico). A literatura de imaginação ou de criação é a interpretação da vida por um artista através da palavra. No caso da ficção (romance; conto, novela), e da epopéia, essa interpretação é expressa por uma história, que encorpa a referida interpretação. É, portanto, literatura narrativa.
A essência da ficção é, pois, a narrativa. Ë a sua espinha dorsal, correspondendo ao velho instinto humano de contar e ouvir histórias, uma das mais rudimentares e populares formas de entretenimento. Mas nem todas as histórias são arte. Para que tenha o valor artístico, a ficção exige uma técnica de arranjo e apresentação, que comunicará à narrativa beleza de forma, estrutura e unidade de efeito. A ficção distingue-se da história e da biografia, por estas serem narrativas de fatos reais. A ficção é produto da imaginação criadora, embora, como toda a arte, suas raízes mergulhem na experiência humana. Mas o que a distingue das outras formas de narrativa é que ela é uma transfiguração ou transmutação da realidade. Ela coloca a massa da experiência humana dentro de um molde, seleciona, omite, arruma os dados da experiência de modo a fazer surgir um plano, que se apresenta como uma entidade, com vida própria, com um sentido intrínseco, diferente da realidade. A ficção não pretende fornecer um simples retrato da realidade, mas antes criar uma imagem da realidade, uma reinterpretação, uma revisão. Ë o espetáculo da vida por meio do olhar interpretativo do artista, a interpretação artística da realidade.”’

• Elementos da narrativa
O mundo da ficção desenvolve-se ao redor dos seguintes elementos estruturais:
1.Personagem
É a pessoa (de persona) que atua na narrativa. Pode ser principal ou secundária, típica ou caricatural.
2.Enredo
É a narrativa propriamente dita, que pode ser linear ou retrospectiva, cuja trama mantém o interesse do leitor, que espera por um desfecho. Chama-se também simplesmente de ação.
3. Ambiente
É o meio físico e social onde se desenvolve a ação das personagens. Trata-se do pano de fundo ou do cenário da história, também designado de paisagem.
4.Tempo
É o elemento fortemente ligado ao enredo numa seqüência linear ou retrospectiva, ao passado, presente e futuro, com seus recuos e avanços. Pode ser cronológico ou psicológico. Cronológico, quando avança no sentido do relógio; psicológico, quando é medido pela repercussão emocional, estética e psicológica nas personagens.
5.Ponto de vista
Tecnicamente, podemos dizer que se refere às diferentes maneiras de narrar. Geralmente, se resumem em duas:
a) narrador-onisciente: autor conta a história como observador que sabe tudo. Usa a 3ª pessoa.
b) narrador-personagem: autor conta, encarnando-se numa personagem, principal ou secundária. Usa a 1ª pessoa.
6. Discurso
É o procedimento do narrador ao reproduzir as falas ou o pensamento das personagens. Há três tipos de discurso:
a) direto: neste caso, o narrador, após introduzir as personagens, faz com que elas reproduzam a fala e o pensamento por si mesmas, de modo direto, utilizando o diálogo. Exemplo:
Baiano velho perguntou para o rapaz:
—O jornal não dá nada sobre a sucessão presidencial
b) indireto: neste tipo de discurso, não há diálogo; o narrador não põe as personagens a falar e a pensar diretamente, mas ele faz-se o intérprete delas, transmitindo o que disseram ou pensaram, sem reproduzir o discurso que elas teriam empregado. Exemplo:
Baiano velho perguntou para o rapaz se o jornal não tinha dado nada sobre a sucessão presidencial.
c) indireto livre: consiste na fusão entre narrador e personagem, isto é, a fala da personagem insere-se no discurso do narrador, sem o emprego dos verbos de elocução (como dizer, afirmar, perguntar, responder, pedir e exclamar). Exemplo:
Agora (Fabiano) queria entender-se com Sinhá Vitória a respeito da educação dos pequenos. E eles estavam perguntadores, insuportáveis.
Fabiano dava-se bem com a ignorância. Tinha o direito de saber?
Tinha? Não tinha.
7. Linguagem e estilo
É a vestimenta com que o autor reveste seu discurso, nas falas, nas descrições, nas narrações, nos diálogos, nas dissertações ou nos monólogos.

• Espécies narrativas
Nem sempre é possível classificar um determinado texto ou obra dentro de uma determinada modalidade narrativa. Didaticamente, podemos caracterizar o romance, a novela, o conto, a crônica e a epopéia.
1. Romance
É a modalidade narrativa de maior vulto, onde a visão do mundo do autor se manifesta pelo forte conflito das personagens. O romance aborda os mais variados assuntos. Assim, podem ser históricos, psicológicos, experimentais, científicos, policiais etc.
São exemplos de romances: Iracema, de José de Alencar; Quincas Borba, de Machado de Assis; O mulato, de Aluísio Azevedo; Corpo vivo, de Adonías Filho etc.
Há ainda romances que são classificados como verdadeiras epopéias em prosa. Entre eles estão: O sertões, de Euclídes da Cunha e Grande sertão: veredas, de Guimarães Rosa.
2. Novela
É a modalidade narrativa que se caracteriza pela sucessividade dos episódios, muitas vezes das personagens e dos cenários. O tempo e o espaço conjugam-se dentro dessa estrutura. Assim; a novela condensa os elementos do romance. Os diálogos são mais rápidos, as narrações são diretas e sem circunlóquios, tudo favorecendo a precipitação da história’ para o seu desfecho.
Como exemplo de novelas, podemos citar: Noite, de Érico Veríssimo; A vida real, de Fernando Sabino; Uma vida em segredo, de Autran Dourado; A morte e a morte de Quíncas Berro d’Água, de Jorge Amado etc. A televisão atual explora essa espécie de narrativa com muito sucesso.
3. Conto
É a modalidade narrativa de maior brevidade. Se o romance é a vida, o conto é o caso, a anedota. Com economia de cenários e personagens, a solução do conflito é narrada perto do seu desenlace.
Eis alguns exemplos de contos já clássicos: O alienista, de Machado de Assis; Apólogo brasileiro sem véu de alegoría, de Antônio de Alcântara Machado; O negrinho do pastoreio, de João Simões Lopes Neto; O peru de Natal, de Mário de Andrade.
4. Crônica
É uma espécie de narrativa curta e condensada que capta um flagrante da vida, pitoresco e atual, real ou imaginário, com uma ampla variedade temática.
5. Epopéia
É uma criação literária, geralmente em verso, de fundo narrativo. (Do grego epos = canto, narrativa). Desde os tempos antigos, a epopéia tem a finalidade de exaltar os heróis nacionais e cantar os grandes feitos dos povos.
Modernamente, certos padrões ou estilos de vida foram substituídos por outros bastante diversos. Os gêneros também foram evoluindo. Assim, o gênero narrativo em verso — a epopéia — cedeu lugar ao gênero narrativo em prosa, designado simplesmente de narrativa ou ficção, nas suas diversas modalidades.
(in Estudo Dirigido de Português, vol. 1, J. Milton Benemann e Luís Agostinho Cadore, 1984, Editora Ática)

O conto que segue pertence a um dos maiores contistas brasileiros da atualidade, o curitibano Dalton Trevisan. O escritor notabilizou-se em nossa literatura com o livro de contos O vampiro de Curitiba, seguido por outros como A guerra conjugal e Desastres do amor. A síntese, um dos traços do autor, é também uma das tendências do conto contemporâneo.
O ciclista
Curvado no guidão lá vai ele numa chispa. Na esquina dá com o sinal vermelho e não se perturba – levanta vôo bem na cara do guarda crucificado. No labirinto urbano persegue a morte como trim-trim da campainha: entrega sem derreter sorvete a domicílio.
É sua lâmpada de Aladino a bicicleta e, ao sentar-se no selim, liberta o gênio acorrentado ao pedal. Indefeso homem, frágil máquina, arremete impávido colosso, desvia de fininho o poste e o caminhão; o ciclista por muito favor derrubou o boné.
Atropela gentilmente e, vespa furiosa que morde, ei-lo defunto ao perder o ferrão. Guerreiros inimigos trituram com chio de pneus o seu diáfano esqueleto. Se não se estrebucha ali mesmo, bate o pó da roupa e – uma perna mais curta – foge por entre nuvens, a bicicleta no ombro.
Opõe o peito magro ao pára-choque do ônibus. Salta a poça d´água no asfalto. Nem só corpo, touro e toureiro, golpeia ferido o ar nos cornos do guidão.

Ao fim do dia, José guarda no canto da casa o pássaro de viagem. Enfrenta o sono trim-trim a pé e, na primeira esquina, avança pelo céu na contramão, trim-trim.

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